Tabuada de memória
José Chagas
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Volto agora à minha terra,
como quem de longe vem
e o seu caminho não erra,
porque o conhece bem,
porque, como já foi dito,
ninguém se perde na volta,
e sabe bem do infinito
a ave que as asas solta.
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Voltei para recordar,
que recordar é viver
um sonho particular,
misto de angústia e prazer.
Que recordar não é só
chorar o que não há mais,
nem é recolher o pó
de antigos restos mortais.
É deixar de lado o mundo
de superfície ilusória,
que eterno é o que está no fundo
de nossa própria memória.
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Eu vi o nada como é,
depois de tudo haver sido
e senti sob o meu pé
o pó do que foi vivido.
Senti as dores ferinas
de todo o passado meu,
que duro é pisar as ruínas
da casa onde se nasceu.
Duro é ouvir nas pedras mortas,
que antes foram vitais,
o ranger de velhas portas
que já não existem mais.
Duro é ver com o peito em ânsia
sombras que vão e que vêm,
como os fantasmas da infância
lembrando alguém, sem ninguém.
Duro é ouvir o eco das falas
que entre balanços de redes
ouvi nas antigas salas,
agora chãos sem paredes,
chãos reduzidos a escombros
que nunca mais se erguerão,
e eu sentindo nos meus ombros
o fardo da solidão.
Ali olhei-me no espelho
do tempo e me vi menino
brincando no chão vermelho
onde plantei meu destino.
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A morte fica presente
no lugar do que se finda,
por mais que o mundo a afugente
é ela que fica ainda.
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Eu vi a morte parada
em cada canto do chão
onde não havia nada
do que outrora amei em vão.
Vi a morte em cada pedra,
nos cacos das velhas telhas,
vi até como ela medra
ao sol se abrindo em centelhas.
A morte é proprietária
do chão que o mundo lhe deu
e em sua reforma agrária
cada um tem o que é seu.
Ela não tem compromisso
nem com rico nem com pobre,
seu caso é estar a serviço
de tudo o que a terra cobre.
Ela varre a terra inteira,
mas nunca será varrida
e sempre se posta à beira
do precipício da vida.
Na casa de minha infância
a morte tudo varreu,
varreu até a distância
entre mim e o que sou eu.
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Tudo se foi lentamente
durante anos e anos,
sob a perdida semente
do sonho e dos desenganos.
Ficou a morte sozinha
dona de um poder maior,
e nenhuma ilusão minha
pôde manter-se em redor.
Ficou a morte da terra,
ficou a morte da casa,
porquanto a morte se encerra
no próprio chão que ela arrasa.
A morte é tudo o que sobra
de tudo quanto termina,
ela é sua própria obra
e a sua própria oficina.
E hoje tudo é só tristeza
de não existir mais nada
além da saudade presa
em si mesma e desolada.
A solidão é tão densa
que eu lhe sinto a solidez
pesando como uma prensa
sobre o que o tempo desfez,
ou pesa como uma porta
que se fecha sobre mim,
fantasma entre coisa morta
à espera do próprio fim.
E afinal tudo o que resta
é o não restar coisa alguma,
na abstração manifesta
do que se desfez em bruma.
Não há nem mesmo sinais
da mais longínqua espelunca,
e nunca mais, nunca mais
e nunca mais e mais nunca.
Fragmento do livro Tabuada de memória
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Para adquirir o Livro entra em contado com o email de
deusanachagas@gmail.com
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